Um dos acontecimentos mais relevantes na cultura portuguesa do final do século XX foi a alteração da letra de uma canção fantástica, muito popular durante várias gerações, chamada Com um Brilhozinho nos Olhos.
No tema do Sérgio Godinho canta-se a emoção dos silêncios que falam, das conversas que se enchem de velocidade, das palvras que se soltam da pele.
Na versão original o Sérgio gravou: ‘dissemos o que nos passou pela tola, do estilo és o number one dou-te 20 valores és um 13 no totobola’.
Desde há uns anos para, canta: ‘...o que nos caiu no goto, ... és uma 6 no totoloto’.
Se uma canção fala a língua das pessoas que a ouvem, é porque reproduz um mundo verdadeiro e não uma ficção. Mas fá-lo também porque a vida se deixa inundar pelas palavras das grandes canções. Com toda esta permeabilidade, é normal que as letras das músicas se deixem marcar pelo tempo em que foram escritas. A reescrita do Brilhozinho é um caso pós-moderno de suicídio do autor através de censura póstuma.
Corrigir as noticias e os livros de historia para os adaptar à política actual do regime, era a profissão do protagonista de 1984. E, apesar de já estarmos em 2007, o livro de George Orwell continua a ser lido sem precisar de mudança no título. Talvez a comparação seja um pouco exagerada, até porque o Ministério da Verdade do Império de Oceania não se deveria importar muito com os jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Mas a questão mantém-se:
Agora com o euro-milhões como é que vai ser?
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Seja como for, o Sérgio Godinho continua a ser, para mim, um 13 no tobola. Apesar de não ter sido capaz de evitar a digestão do totobola pelas empresas de apostas online.