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Probabilidades e Divindades

Bem dizia o VG: "No momento em que aterrares no Brasil, a tua probabilidade de morrer aumentará em 20%. Pelo menos." Não sei se o número era este. Na altura pareceu-me apenas uma tirada de bar, para responder à letra a algum comentário pseudo-dramático meu, tlvez envolvendo seguros de viagem e a minha condição de pai. Mas agora entendo o que ele quis dizer. Não que eu esteja morto. Ou que o cálculo de uma percentagem transformando perigos em riscos, tão ao gosto da epistemologia das seguradoras, faça algum sentido. Aqui recorre-se mais a divindades de toda a ordem e às mais diversas formas de as invocar e peticionar. Aliás, enquanto a convivência constante com o que aprendi a encarar como ameaças endurece a pele da maioria dos brasileiros, parece-me que os faz incrivelmente vulneráveis a seres do outro mundo.
Não sei se a profecia Viliana teve algum efeito inconsciente sobre a minha percepção. A verdade é que depois de 11 horas dentro de um avião que sobrevoou uma grande diagonal sobre o Atlântico, com alguns momentos de instabilidade e muitos momentos de oração dos meus companheiros de viagem, foi só depois de aterrar no Rio que comecei a sentir a fragilidade da existência aumentando em percentagem considerável. Começou pela viagem de taxi que me levou do Aeroporto até onde fiquei instalado. Era noite e o calor era quase insuportável. Eu ia preparado com uma série de estratégias para não ser enganado na tarifa. Só não ia preparado, e nem tinha como, para ser dirigido a uma velocidade louca, num carro velho, a querer despedir-se das suspensões, por um taxista que mal conseguia abrir os olhos e exalava uma nuvem de álcool à sua volta. As alturas em que me senti mais seguro durante essa viagem foram quando estivemos parados em filas de trânsito passando pelo complexo de favelas da Maré. Aí, disseram-me depois, os assaltos e tiroteios são frequentes. Acho que, mesmo que tivesse ouvido tiros, teria preferido que o carro estivesse parado.
À chegada ao meu destino, o peso de todas as advertências recebidas, caiu sobre mim. De tal forma que, se não fosse eu ter convencido o Serguei, que me recebeu, a acompanhar-me num rolé, corria sério risco de ficar em casa, refugiado do espectro ameaçador do movimento caótico da cidade. Na casa que nem era minha, mas sim do André, um amigo do VG, o qual eu não conhecia senão por email, que nem sequer estava em casa. Umas horas mais tarde ele e a Gabi, sua namorada, encontraram-nos. Estava eu sentado numa esplanada de um boteco ali vizinho, no Bairro da Lapa, eu e o seu companheiro de casa e mais umas quantas garrafas de cerveja vazias. Relembraram-nos do cheiro do esgoto que transbordava há horas pela tampa ao nosso lado, mas ficaram lá mais umas cervejas connosco. De calções e t-shirt, a suar, a beber e a fumar, a língua solta e os ouvidos em êxtase pela sorte de poder receber tantos saberes e paixões sobre um mundo completamente novo, rcordei o aviso do Pedro, sobre a melhor forma de enfrentar os perigos da cidade: "Relaxa!". Ou como dizem aqui, sem estresse. É certo que a informação é importante - 'Tem que ficar esperto'. Mas muitas vezes o medo pode trazer maior vulnerabilidade.
A verdade é que o VG tinha razão. Não só em me mandar para casa do André. Também em me avisar que a vida e a morte têm outro tipo de entendimento mútuo neste país. Agora em Curitiba, 15 dias depois de passar o equador, debaixo de um edredon e um cobertor, recebendo noticias dos mais de cem mortos nos rios que apareceram repentinamente ontem à noite nas ruas do Rio de Janeiro, entendo isso. Já não bastavam os motoristas loucos e as estradas em mau estado, a precaridade das instalações eléctricas, as doenças tropicais, as omnipresença das armas exibidas por qualquer segurança privado e potencialmente na posse de qualquer viciado em craque, ou cidadão cumpridor da lei (excepto da lei de porte de arma), a omnipresença de drogas fortes e baratas, a comida deliciosa, hiper-calorica e barata, a cerveja, a cachaça, os fumos de carros velhos, a falta de higiene, em especial nas casas de banho e saneamento, as cheias recorrentes... Já não bastava tudo isso, ainda vim encontrar em Curitiba, uma aranha que pode ser mortal, mas cuja mordida normalmente 'apenas' tem como efeito, a necrose dos tecidos e a amputação de um membro ou outro. A Aranha Marron tem no Paraná a sua maior disseminação. Parece que veio do Egipto e encontrou aqui condições ideais de clima e ausência de predadores. Agora vou dormr e espero que não me suba nenhuma para a cama. Elas não são agressivas mas estão armadas, E qualquer bicho armado, mesmo que só agindo em legitima defesa, é um perigo. Vou ver se há algum santo ou divindade para este efeito. E amanhã sacudirei os sapatos antes de os calçar.

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