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"Estamos em Seca!"

"Estamos em Seca", Cartaz da Thames Waters, Londres Abril de 2012 (foto de Delemere Lafferty)

Danças da Chuva: Austeridade e Abundância Para Todos
(Maio, 2012)
O que se passa com a água em Inglaterra ajuda-me a entender o que significa austeridade, a necessidade que temos dela e algumas das suas contradições.  Tal como nas economias europeias, a chuva continua a cair, mas não chega onde é preciso. Ao contrario das economias europeias, não existem sistemas financeiros com que se conta para regular a necessária redistribuição e racionalização de recursos. Por isso faz-se uso de campanhas e leis que são iguais para todos. Talvez este exemplo nos esteja a mostrar um caminho melhor.
Abril de 2012 foi o Abril mais chuvoso de que há memória meteorológica em Inglaterra ou seja, desde 1910. Em algumas regiões houve dias que mais do que duplicaram os anteriores recordes de pluviosidade. E mesmo assim, grande parte do país tem estado e continua a estar oficialmente em seca. Em muitas regiões, incluindo Londres,  o uso de mangueiras de jardim está e vai continuar proibido, com poucas excepções. Quer a mangueira seja usada para lavar uma bicicleta ou um caro de luxo, o seu uso é ilegal. Em paralelo, há fortes campanhas de sensibilização promovidas pelas empresas que administram as águas.
Tudo isto é para mim muito intrigante. Como é possível uma seca com tanta chuva? Como é possível haver campanhas para redução de consumo promovidas pela companhia que vende a água? Como é possível haver leis de austeridade que são iguais para todos?
 O que se passa é que nos últimos 2 anos houve apenas 4 meses com precipitação acima da média. Em todos os outros meses choveu bem abaixo do normal e necessário para que a água entre na terra. Em Abril do ano passado, por exemplo a precipitação em Londres foi próxima de zero. Ainda mais importante para a água que consumimos em casa são as chuvas de Inverno, que não evaporam facilmente nem são consumidas pelas plantas em crescimento. E essas têm sido raras. Para mais, depois de um inverno muito seco, o solo está menos permeável e os chuveiros de Abril tendem a escoar ou inundar à superfície. Por isso apesar da recuperação de alguns depósitos de chuva, as águas subterrâneas estão ainda a níveis muito baixos. Ainda que o relvado do meu jogo de futebol semanal esteja alagado e, por isso, interdito.
A aparente contradição aumenta a necessidade de campanhas de esclarecimento. Ainda mais porque a maior parte das casas inglesas não tem contador de água. As pessoas pagam um valor fixo que depende da dimensão e de outros critérios relativos à propriedade. Muita gente diz que o pagamento de um preço dependente do consumo traria vantagens para a gestão da água. Mas não poderia isso diminuir em vez de aumentar a conscientização que hoje vai crescendo em torno da necessidade de usar água de forma responsável? Será que os humanos apenas conseguem estabelecer relações racionais entre os seus comportamentos e a sua carteira? Olhando em volta, não vejo outro bem que seja alvo de tantos incentivos a padrões de consumo sustentável como a água. Serão eles menos eficazes do que os habituais mecanismos de mercado?  O bacalhau fresco, por exemplo, que os ingleses consomem em quantidades industriais (no tradicional Fish’n Chips) aumenta de preço, mas a ameaça de extinção continua a aumentar. Não estou a ver um mercado de peixe a colocar um cartaz anunciando as alternativas mais sustentáveis ao peixe mais caro. O mesmo se passa com a gasolina, o gás ou a electricidade. Os preços crescem e o consumo crescente continua a pressionar os recursos naturais. Estudos recentes promovidos nos EUA mostraram que a inserção de um “smiley” amarelo nas contas das casas que tiveram menos consumo do que as dos seus vizinhos têm mais impacto na promoção de poupança de energia do que o aumento do preço. A recompensa simbólica parece ser mais apelativa do que a vantagem monetária. O governo inglês tem falado em introduzir essas experiências. No caso da água, seria necessário haver contadores para isso acontecer. Mas da necessidade de contadores até à ideia de que o preço pode servir para regular os gastos de uma substância tão vital vai um passo maior do que geralmente se assume.
Se temos de ser austeros com a água, o dinheiro que cada um pode pagar não parece ter um papel muito relevante. É uma questão de justiça e de senso comum. Mas é também uma questão de racionalidade. Se a água tem um preço por quantidade há alguém a vendê-la. Se alguém a vende, há um agente interessado em aumentar o consumo.
A confusão instala-se quando substituímos a necessária austeridade na distribuição e consumo de recursos com a distribuição de dinheiro, salários e custos. Pagar subsídios de desemprego não é desperdício. Já sujar o rio para depois gastar recursos a limpá-lo, é. Austeridade não é deixar de investir em cultura; isso é suicídio, pois a cultura é o que nos ajuda a entender a relação entre a nossa torneira e o rio. Austeridade é captar a água da chuva para lavar o carro e a água do banho para puxar o autoclismo.  Poupar nas necessário reparações de fugas no sistema de distribuição de água não é austeridade – é desperdício. Na Europa ainda temos água em abundância. Mas não podemos continuar a usá-la acima das nossas possibilidades colectivas. Por isso se estão a gerar novos padrões de consumo. E não é a carteira que nos vai fazer aderir a eles. É a cultura.

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