Skip to main content

Aprender a Contar



Até agora pudemos dar-nos ao luxo de sermos indivíduos. Tipo, Apareceu-me hoje um indivíduo lá no escritório… Ou tipo, O que me interessa é estar de bem com a minha consciência individual. Pudemos ser indivíduos, cada um com o seu perfil. Cada um mais um comentador politico competindo por atenção na rede, imitando aqueles indivíduos que na televisão e na rádio criticam outros indivíduos sem serem capazes de se entenderem com qualquer grupo para fazer seja o que for.

Até agora, fomos indivíduos, relacionámo-nos singularmente, com sistemas burocráticos, cada uma de nós mais um eu, todas diferentes todas iguais, todas jogando o mesmo jogo de singulares. 

Até agora temos sido livres para sermos indivíduos, todos com objectos iguais nos nossos espaços privados: cada um com a sua TV, o seu micro-ondas, o seu computador pessoal, a sua chaleira eléctrica, a sua torradeira, o seu telefone esperto e a sua rede de WIFI separada da dos seus vizinhos por uma password super secreta.

Até agora temos sido indivíduos ligados a redes sociais onde podemos expressar o que queremos em total liberdade. Todos com as mesmas oportunidades e as mesmas restrições, ninguém extravasando molduras ou limits de caracteres e pixéis. Cada um com ferramentas iguais a todos os outros. Cada um com as suas ferramentas. Todos no mesmo plano. Todos conectados na mesma rede. As grandes corporações do capitalismo avançado acabaram por realizar uma espécie de utopia da igualdade regulamentada que permite ao individuo expressar-se sem amarras nem correcções politicas. 

Até agora pudemos todos ser livres de trabalhar de forma individual ligados ao mesmo cabo ótico, mas cada cada um no seu terminal, cada um com o seu sistema de gestão de dados ou de comunicação electrónica entre si e o mundo. Em relações de trabalho individualizadas, cada um com as suas competências, compete com os outros indivíduos para dar o melhor de si à mão invisível que lhe dará de comer, se o merecer.

Até agora confiámos na mão invisível que garante que a luta pela felicidade individual gera uma percentagem de felicidade para os outros indivíduos. A mão invisível às vezes mostra-se e transforma-se – pode ser o fisco, mas não precisa de ser; pode ser a mão caridosa, ou a mão neo-mágica da racionalidade iluminada; pode ser uma mão que cria empregos, uma mão que agrega votos, ou uma mão que conta votos e cabeças na avenida em protesto.

Até agora demo-nos ao luxo de sermos indivíduos, mas não podemos mais. 

Teremos forçosamente de meter as mãos na massa de outro indivíduo, e amassá-lo, prová-lo, descobrir que ingrediente lhe falta ou sobra. Talvez seja mesmo um pedaço de nós o fermento que o vai fazer crescer, encher o peito de ar. Teremos de cantar em coro, com as nossas vozes desafinadas, letras das quais não saberemos todos os versos, cantar mesmo os versos que emendaríamos se pudéssemos. Vamos precisar de nos partir de formas diferentes, associar-nos de formas que não conhecemos ou que são desconhecidas de todos.

Até agora julgávamo-nos inteiros. Hoje percebemos que os nossos corpos são incompletos. Que é nos outros que está os que lhes falta. Que não podemos ser contados como somatórios de uns e zeros. Que os espaços da cooperação, da colaboração, da união, da discussão, do atrito dos valores, da força coletiva, do amor, não são espaços euclidianos, lineares, finitos, somáveis e divisíveis. São espaços abertos, curvos, inter-dimensionais, que multiplicam as contribuições, desmultiplicam os afectos, desafiam a álgebra e a geometria, materializam as possibilidades e procuram o reconhecimento das ausências.

Até agora somávamos e subtraíamos. Uma a um. Fazíamos contas de dividir. Coçávamos a cabeça e desentendíamo-nos com o infinito. Calculávamos os riscos, criávamos algoritmos para apostas, demarcávamos o futuro entre indivíduos vencedores e indivíduos vencidos. Mas o futuro tornou-se medonho. A única forma de o partilhar é imaginando catástrofes. E assim se juntaram todos os indivíduos na distopia colectiva da destruição do mundo. 

Agora, se queremos deixar de ser os átomos de uma bomba atómica do tamanho do planeta, teremos de reaprender a contar. Agora é hora de contar e recontar histórias, forças, ausências, saberes. De contar com os outros. De contar sem os outros. De descontar certezas. De recuperar variáveis eliminadas. De amar sem medo. De descolonizar o futuro. De nos desmontarmos como indivíduos. De nos desligarmos de circuitos destruidores. De nos reconectarmos com o chão e com outros ex-indivíduos. É hora de reaprender.

Popular posts from this blog

Post-..."Tomorrow composts today"

“So it was I had my first experience with the Accelerator. Practically we had been running about and saying and doing all sorts of things in the space of a second or so of time. (…) But the effect it had upon us was that the whole world had stopped for our convenient inspection.” H.G.Wells, 1901, The New Accelerator in Modern Short Stories, The growth of cities has created bigger opportunities for (and was in many ways led by) the production of new needs. With consequent increase in waste production. Part of this waste is the result of consumption: composed by materials and objects that were destroyed by human use or have decayed over time. But an increasing part of this waste is generated through symbolic processes, i.e., created by the production of consumption, by industries whose main products are new forms of desire. Since innovation is the main drive of economy, commodities are produced for worlds that do not exist yet, worlds which they will help shape. This power of transforma

Minute nods

Life in the city is made possible by a fragile web of mutual trust, though a filigree of unspoken pleasantries, and an intricate meshwork of altruistic gestures. A permanent exchange of mute interrogations and minute nods between strangers forms a complex language that ensures the common conditions for survival. Of course we can see bodies looking past other bodies, trying to walk though, overtake, get there before them, without knowing very well where exactly is there, or whether there is in fact a desired place, or if what there is to do there is actually what needs doing. But that is always what is emphasised when talking about the city, isn't it, the rat race. It's a gross version of urban metabolism in which life and its processes are reduced to competition between contained unities, as if one had just arrived from a rushed reading of the theory of evolution and had forgotten how life is sustained by a convuluted tangle of symbiotic connections with other animals, pla

Raindance

I remember my grandad telling me that the Americans were sending rain to the Olympics in Moscow to sabotage it. But can they do it, I would ask, Of course they can. My awe was then broke by rational triangulations, Of course it is impossible to make rain, that surely is a mix between conspiracy theories and magical beliefs in science. Well, if an Independent journalist can be more reliable than a grandfather, here's the confirmation that my grandad always knew more than his contemporaries.