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É tão bom ser salvo que me apetece passar a vida a naufragar

Robinson Éosurc, o Náufrago Frágil

Aos poucos acordado pelo sol a bater compassadamente na cabeça deitada na areia, entre o vai e o vem do sargaço e dos outros presentes que as ondas vêm oferecer à praia...

Antes dos olhos e dos ouvidos, abre-se uma janela na memória. O náufrago frágil recorda a sua pose de herói distraído que uma onda derrubou pelas costas. Agora toda a força que lhe resta concentra-se na mão fechada sobre um destroço daquilo a que chamava barco. Havia mais ar no peito do que na vela, mais peso na voz do que na âncora...

Às janelas entreabertas dos sentidos chega o som de centenas de vozes amalgamadas, envolvido na cadência do marulho salgado.

O náufrago frágil abre os olhos...

“voguei à deriva – no tempo e no espaço – sem noites nem dias, por não sei quantos oceanos de silêncio, pra vir encalhar nesta ilha apinhada de gente....”

O náufrago frágil tenta compor a sua aparência de herói. Ergue a cabeça, empurra o corpo para fora do chão, passa a mão pela cara descobrindo-a de areia (mas não da barba de 100 dias) deixa os olhos desembrulharem-se da rebentação de espuma, algas e destroços, e espera que um caderno coberto com a sua própria caligrafia desfocada abrace os seus pés com as suas páginas. Começa a ler:

“Se o Mar se pudesse prolongar, estender, desdobrar, teria o seu nome... os nossos silêncios não são escuros como os outros. Têm luzes – sei lá quem as acende..... têm cores – não sei quem as pinta. Os nossos silêncios são espelhos onde as nossas vozes se misturam e as palavras se preparam para serem ditas. E quando a escuridão nos cobre, descobrimo-nos. A nossa escuridão não é negra e silenciosa como as outras. A nossa escuridão é um desfiladeiro de ecos onde os gritos se multiplicam do outro lado...”

Fecha o caderno, deita-o sobre a areia quente e senta-se ao seu lado com uma vontade incontrolável de escrever. A sua pose de herói impede-o de pedir qualquer coisa a quem quer que seja. Olha em volta (para ver se por acaso o “Sexta-Feira” não estará entre as dezenas de jogadores de raquetes, vólei e futebol que enchem a praia à sua volta. A verdade é que mesmo que o visse não o reconheceria. A única forma de reconhecer “Sexta-Feira” seria ele aparecer como o único habitante humano da ilha e mesmo assim ele não faz ideia se hoje é ou não sexta-feira, que foi o dia em que Robinson Crusoe encontrou “Sexta-Feira”, podia até dar-se o caso de o único habitante da ilha ser uma mulher e então o mais provável seria ela chamar-se Dona Conceição. Mas nada disto tem muita pertinência uma vez que a ilha está cheia de gente e o náufrago frágil apenas quer arranjar coragem para pedir uma caneta a alguém, tal é a sua vontade de escrever, além de que os seus pensamentos andam assim porque tinha estado a ler Saramago nos últimos dias de viagem na jangada de casca de noz) e começa a escrever mentalmente:

“ tudo tem pelo menos dois lados. A casca de noz tem o côncavo e o convexo, os nós têm duas pontas – por mais emaranhadas que estejam podem sempre separar-se, ou pelo menos cortar-se. Nós tem pelo menos duas pessoas, por muito unidas que sejam são os vários lados de um grupo, sendo cada um deles composto por inúmeras facetas. Uma relação também tem vários lados. Eu e o meu barquinho, por exemplo. Levou-me a vários sítios. Mesmo quando não me levou lado nenhum deu-me muito prazer o simples fato de andar sobre as aguas graças a ele, de me juntar ao balanço eterno do mar e, por momentos, fazer parte dele. Eu não sei muito destas coisas mas em qualquer relação também há pelo menos dois lados. Se dá muito prazer, tem também de dar muita dor. Como não pode estar sempre a dar prazer, nos intervalos não pode simplesmente ficar à espera. Tem de doer. Não vale a pena tentar evitar a dor. Não magoar é negar o amor. Tentar ser amigo quando se ama é o mesmo que querer que à maré cheia suceda a maré semi-cheia sem haver maré vaza, ou que à lua cheia suceda o quarto crescente, ou que ao dia suceda a manhã. Se calhar é impossível. Talvez tenha sido esse o erro. Ou talvez seja apenas o delírio de um náufrago a elaborar os primeiros raciocínios sobre as causas do acidente. Quais terão sido as primeiras explicações avançadas pelos sobreviventes do Titanic? Terão sido muito diferentes do que se sabe hoje?”

Entre os destroços que entretanto foram dando à praia motivando a curiosidade limitada de alguns dos elementos da multidão de habitantes daquela ilha deserta, algumas cordas com complicadíssimos nós de marinheiro, com algumas partes emaranhadas, embrulham-se no sargaço e trazem alguns metros de fita de filme pelo meio. Altamente inflamável.

Pela primeira vez na sua vida o frágil náufrago solitário via-se perante a intrigante e misteriosa tarefa de desatar nós. Ao mesmo tempo que rebobinava o filme e retirava o sargaço que lhe atrapalhava a visão, resolveu lançar mãos ao desafio. Olhando frente, ergueu-se num salto e para a confusão à sua escreveu na areia alisada pela maré vaza, criando um espaço livre junto à água que se podia ver perfeitamente do céu:

“É TÃO BOM SER SALVO QUE ME APETECE PASSAR A VIDA A NAUFRAGAR”


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