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Saberes e Sabores

Chegou ao fim a minha segunda semana em Curitiba. Se a primeira foi de ambientação física à cidade, ao centro e a duas zonas da periferia onde fiquei hospedado, esta teve um forte componente académico.
Foi a semana de abertura dos programas de pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná. O programa existe há pouco mais de vinte anos, começou por ser só de doutoramento e inaugura neste ano a primeira turma de mestrado. Neste aspecto, é um caso insólito na Universidade brasileira. É-o também na sua condição interdisciplinar e na sua independência de qualquer departamento. Desenrola-se no sector de ciências agrárias, entre animais e estufas, mas os docentes vêem de vários departamentos, em especial das ciências sociais e naturais.
Estou inscrito no programa como aluno ‘sanduíche’, que é a formula oficial brasileira para esquemas de frequência de um aluno em outra universidade por um período intermédio.
Um dos momentos altos da semana foi, sem dúvida, a palestra de Carlos Walter Gonçalves-Porto, autor de um livro intitulado ‘A Globalização da Natureza, A Natureza da Globalização', uma das melhores a que assisti em Universidades. O seu estilo falador e empático lembrou-me o meu amigo Hugo nos seus momentos mais inspirados. Em especial quando sempre após uma observação mais provocante, olhava para alguém na plateia por sobre os óculos com um sorriso maroto. Também quando no fim da palestra, para reforçar uma ideia a que recorreu por diversas vezes, da semelhança entre as palavras saber e sabor, abriu a boca e fez aquele gesto de colocar o indicador no meio da língua olhando provocadoramente para a audiência. Provocação foi o mote da palestra - como ele disse pro-vocare quer dizer despertar outras vozes. Como por exemplo quando, a propósito dos debates entre inter-, multi-, pluri- e a– disciplinaridade comentou que essa é uma discussão de brancos. Aproveitando o desconforto que a abordagem da questão racial provoca por aqui, rematou ironicamente, O Brasil não é um pais racista, só mesmo esta sala. Olhem em volta. De facto, aparte um negro que ele referiu pelo nome, toda a sala era composta por brancos. Nosso país é multi-étnico, só esta sala é que não é, não é isso? Tudo isto enquanto caminhava pelo corredor central da plateia, tocando em vários ombros e dirigindo-se pelo nome a várias pessoas que conhecia numa audiência de cerca de cem pessoas. No que concerne ao conteúdo, a fala foi muito próxima de uma palestra recente a que assisti de Boaventura de Sousa Santos na Universidade de Londres, chamada “Epistemologias do Sul”. Gonçalves-Porto citou-o diversas vezes e recorreu sempre a pontes com várias artes e saberes. Carlos Walter foi activista aop lado de Chico Mendes, assassinado pela sua defesa das populações que vivem da floresta. Falou de processos em que o homem matou e desmatou, porque os crimes ecológicos sempre envolvem crimes contra populações e suas culturas. O evento durou cerca de 3 horas e foi recheado de pontos interessantes, mas gostava de re-contar mais uma de suas histórias. Sobre um antropólogo alemão que visitou uma população indígena e pediu a dois dos seus elementos para aprender a sua língua. Os nativos disseram que teriam de falar com toda a tribo porque os processos de decisão são ali sempre colectivos. Acabaram por decidir que sim e lhe comunicar que a tribo ficou muito honrada pelo homem branco ter vindo para aprender e não para ensinar. Quando o antropólogo aprendeu a língua, deram-lhe oportunidade de juntar a tribo e fazer uma pergunta. Apenas havia uma condição: que a pergunta fosse verdadeira e não uma falsa pergunta. E o que se queria dizer com isso? A pergunta verdadeira é aquela para a qual o interrogante não sabe a resposta. A resposta será um processo colectivo de aprendizagem. A história serviu para contrastar este processo científico, de procura de conhecimento com a aprendizagem com que crescemos, em que nos habituamos a ter de responder individualmente a falsas perguntas. O professor elabora um teste com perguntas para as quais ja conhece a resposta e os alunos recolhem às suas carteiras, isolados, para tentar responder-lhes. O argumento qua a historia queria ilustrar refere-se às múltiplas formas pelas quais um modelo de conhecimento se impõe como único esmagando outras formas particulares de saber. Mas esta história fez-me pensar muito não só no sistema educativo que me criou e vou reproduzindo, como na minha própria pesquisa e nas entrevistas que faço.
Quanto ao trabalho de campo, para além dos contactos que efectuei durante a semana, a entrevista múltipla no Instituto Lixo e Cidadania ao técnico responsável pelo apoio às cooperativas de catadores e ao presidente de uma das maiores dessas cooperativas, foi imensamente interessante e informativo, uma conversa de mais de duas horas carregada de informações e pistas. Tenho passado bastante tempo a ouvir a gravação e a seguir as portas abertas.
Dados os compromissos na Universidade e o tempo passado em transportes públicos, por vezes deu ideia que o tempo corria mais depressa do que eu e se esgotava sem nenhum avanço. Mas agora que paro para fazer o balanço, sinto que foi uma semana até bem cheia. Um sanduíche bem composto. Houve conferências inspiradoras, conhecimentos importantes, avanços na recolha de pesquisas anteriores. Conheci um pouco mais da historia e sociedade local no magnifico Museu Paranaense. Foi também com imenso prazer que conheci finalmente em pessoa o professor Márcio de Oliveira, eminente sociólogo Paranense, amigo do meu amigo e colega Aécio que, por email, me havia dado ajuda inestimável na procura de uma relação institucional com a Federal. No encontro, para alem de ter ganho dois livros, pude ainda receber uma grande quantidade de informações sobre a cidade, o Estado e o Pais. Fiz ainda os meus primeiros dois treinos de capoeira e estreei-me nas pistas de forró. As minhas pernas estão claro bem doridas, mas a alma sente-se reinvigorada
Escrevo isto depois de uma outra experiência local, um prato tradicional chamado “Barreado, um estufado com musculo de boi desfiado, num molho com cominhos e outros temperos, arroz e umas fatias de banana a acompanhar. Muito saboroso.

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“So it was I had my first experience with the Accelerator. Practically we had been running about and saying and doing all sorts of things in the space of a second or so of time. (…) But the effect it had upon us was that the whole world had stopped for our convenient inspection.” H.G.Wells, 1901, The New Accelerator in Modern Short Stories, The growth of cities has created bigger opportunities for (and was in many ways led by) the production of new needs. With consequent increase in waste production. Part of this waste is the result of consumption: composed by materials and objects that were destroyed by human use or have decayed over time. But an increasing part of this waste is generated through symbolic processes, i.e., created by the production of consumption, by industries whose main products are new forms of desire. Since innovation is the main drive of economy, commodities are produced for worlds that do not exist yet, worlds which they will help shape. This power of transforma

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