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Lado a lado, a boa atriz e o candidato da extrema-direita

 Começaram os enfrentamentos entre os lideres de partidos concorrentes à Assembleia da República. 

Participam os partidos que conseguiram eleger representação parlamentar nas eleições de 2019. Para sabermos quantos eventos estão planeados, basta dividirmos 362880 por 10080 e temos 36 frente-a-frentes de 25 minutos cada. Falta só multiplicar este número por um número ainda indeterminado de horas de debates entre comentadores televisivos e mais alguns milhares (milhões?) de linhas de postagens e comentários nas redes sociais.

Há quem lhes chame debates, mas cada participante tem 12 minutos para falar, e outro tanto para olhar para quem fala, por isso há muito poucas oportunidades para diálogo. Felizmente as estações de televisão possuem recursos tecnológicos que lhes permitem dividir a tela em duas. Assim podemos ver a cabeça que fala lado a lado com as reações da cabeça que ouve. A cabeça que fala tem de o fazer muito depressa para dizer tudo o que tinha preparado para dizer. A cabeça que ouve e vê  tem de se transformar numa máquina de emojis. 

O ecrã dividido em dois permite que o espetador possa ver as expressões, interjeições e rabugices de quem momentaneamente não tem a prerrogativa da palavra. Nós também não temos mas podemos sempre escrever um tweet. O candidato pode interromper se lhe apetecer, porque a moderadora não manda nada e cada um faz o que lhe apetece, já chega de politicamente correto. 

Nos 25 minutos em que a secretária geral do Bloco de Esquerda (BE) e o presidente do Chega! - Ponto de Exclamação (ChPE) estiveram lado a lado, muita gente pôde admirar a agressão passiva de Martins e a sua tenaz resistência à tentação de gesticular ou gritar contra as frases absurdas e provocatórias do 'candidato de extrema direita' enquanto este as proferia.  Outras pessoas puderam identificar-se com a irritação, as constantes interjeições, os risos sarcásticos e as expressões de indignação de Ventura a cada fala da 'excelente atriz'. Os seus comentários constantes enquanto ocupava a metade supostamente silenciosa dos nossos ecrãs funcionavam como os banners ou tickers que desenrolam títulos de um noticiário, citações de uma entrevista ou números de telefone de um programa de entretenimento interativo. Já as caretas com que reagia a cada frase da oponente eram como emojis que flutuam no ecran durante alguns diretos do facebook. 

Na metade do ecrã que tinha o uso legítimo da palavra, o máximo de interatividade que este formato permitiu foi saber como um candidato qualifica a outra e vice-versa. André optou pela multiplicação de qualificativos (mentirosa, boa actriz, partido irritante), que Catarina ignorou. Catarina ficou-se por posicionar o partido ChPE como de extrema direita, o que fez André dizer-se ofendido quando falou, mas mostrar-se saitsfeito enquanto ouvia. O líder do ChPE repetiu os seus bordões das presidenciais - 'metade a trabalhar, metade que não quer fazer nada', 'os coitadinhos', e até escolheu para cartaz mais uma print com uma foto de uma pessoa negra, repetindo o assobio para cães que tinha soprado no debate das presidenciais com Marcelo. Ou a fonte de ideias secou, ou o ChPE acha que os seus apoiantes não são capazes de memorizar mais do que 2 ou 3 frases. Já a líder do Bloco de Esquerda tentou explicar com números e histórias comoventes que a metade que não quer fazer nada e explora quem trabalha nem é metade - é uma pequeníssima minoria - nem é contituída por pobres com benefícios socias - mas sim por ricos com isenções fiscais. Mas nada do que Catarina Martins disse cabe num meme ou pode ser facilmente articulado num tweet. 

Muitos de nós vimos o frente-a-frente-lado-a-lado entre Ventura e Martins através dos nossos computadores e telefones. Na página de facebook da Sic Notícias, onde foi transmitido em direto, o vídeo tem 64 mil visualizações, 2 mil comentários e mais de mil reações usando um dos 7 emojis disponíveis. Abaixo deste, um vídeo em que a comentadora Angela decide quem ganhou o debate conta 42 mil visualizações, mas é possível que muitos como eu nem sintam necessidade de o ver já que o título 'VENCEU ANDRÉ VENTURA.' retira todo os suspense.

O debate pós-debate que continua nas redes sociais é também feito num formato comprimido por uma estrutura de mediação rígida. O poder dos media sociais é tanto mais forte quanto se apresenta como se fosse uma rede horizontal e transparente, que permite a toda a gente dizer o que quer em qualquer lugar. E não é preciso ver a série Succession para se entender como as novas lógicas dos media digitais se articulam e cristalizam nas lojas de poder dos chamados media tradicionais. Assim o espaço mediático onde interagimos com o debate político é ao mesmo tempo radicalmente novo e é-o para que tudo fique na mesma.

Os primeiros debates eleitorais da democracia portuguesa já tinham Soares, Sá Carneiro, Cunhal, e Freitas lado a lado em ecrãs divididos e já eles percebiam bem a importância de praticar os seus emoticons faciais. Também percebiam bem como era importante repetir frases que pudessem ser utilizadas em discussões de ruas , gritos de ordem e cartazes. Já então eram os memes e a voz confiante que davam as 'vitóras' nos debates, mais do que as argumentações sólidas e factuais, sendo que 'ganhar o debate' significava sempre ter vozes ou penas com espaço nos media atribuindo a vitória com a certeza e confiança de um VAR a decidir um fora do jogo, só que sem as linhas. O primeiro lado-a-a-lado foi o famoso frente-a-frente de Novembro de 1975 entre Soares e Cunhal (link). José Carlos Megre apresentou o debate dizendo que o 'programa não tem limite de tempo mas também não poderemos estar aqui muito mais do que... vá lá, duas horas'. O programa durou mais de 3 horas e meia, grande parte das quais com as duas figuras postas lado a lado no ecrã a preto e branco. E foi logo aí que o tempo em que um debatente olha para o oponente enquanto ele fala começou a ser aproveitado para passar uma mensagem política.  Era nesse espaço de linguagem corporal, interjeições e comentário em rolagem que Cunhal repetia 'olhe que não, sr doutor', e Soares se recostava na cadeira encenando um olhar superior de quem estava a ver para além dos apelos a uma aliança feitos por Cuinhal. O debate não influenciou uma eleição mas sim um golpe militar que ocorreu 3 semanas depois. E para quem cresceu a discutir política nos anos 70 e 80, essses debates televisivos continuaram a fornecer tiradas-memes para debates acesos e por vezes violentos. 

Ventura emergiu no ambiente comunicativo de hoje no qual os debates de 25 minutos também se cristalizaram como modelo. As suas caracteristicas de debatente são vantagens evolutivas de facto, tal como os conservadores ingleses são um produto evolutivo das sociedades de debate de Oxford. É por isso que nas presidenciais Marisa foi criticada por ter perdido o controle e ter partido para o ataque e para a gritaria e agora Catarina Martins é atacada por ter feito passar uma mensagem coerente e racional sem responder às provocações de Ventura e por ter citado o papa 2 vezes. A ideia que temos do que é um debate político é marcada pela história do debate político mas também pelos milhares de simulacros de debate político que todos os dias ocorrem nas televisões a propósito de quase todos os temas. Em parte essa profusão é resultado da dimensão das audiências nacionais que encoraja todos os canais a produzirem programas com cabeças falantes, que são mais baratos. Mas a forma específica que assumem estas pseudo-discussões que enchem os horarios televisivos, com uma forte componente de rivalidade futebolística e discussões regadas a testosterona, torna o campo minado e a aconselha a que se procure outros lugares mais sãos para a luta política.  



 

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